O que queremos da CVM

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) é a autoridade de regulação do mercado de capitais do Brasil. Para entender a importância da regulação, temos, antes, que entender o papel do mercado de capitais na matriz de financiamento e poupança de um país.

O modelo de poupança e acesso a crédito que o Brasil tem adotado baseia-se fundamentalmente na emissão de títulos públicos, por um lado, e na concessão de financiamento subsidiado por meio de bancos públicos, como o BNDES, por outro. Em geral, o custo de captação do governo é maior que os juros cobrados nos empréstimos concedidos pelo BNDES. Nesse caso, a diferença entre os juros pagos aos poupadores que adquirem títulos públicos e o juro cobrado dos tomadores que acessam recursos subsidiados é suportada pelo tesouro nacional, convertendo-se em sistema de transferência de riqueza da sociedade (pagadora de impostos) para as empresas que acessam as linhas de crédito do BNDES.

Uma outra forma de intermediação entre poupadores e tomadores é aquela feita por instituições financeiras. Estas captam recursos de poupadores, remunerando-os por isso a uma taxa não raro abaixo da taxa de juros livre de risco do mercado, e disponibilizam crédito a tomadores, a taxas necessariamente superiores à SELIC. Essa diferença é apropriada pelas instituições financeiras como remuneração pelo serviço de intermediação.

Por outro lado, economias maduras têm desenvolvido cada vez mais o mercado de capitais, que coloca poupadores e tomadores em contato direto, sem as elevadas taxas de intermediação cobradas por instituições financeiras e com maior retorno potencial para o poupador, ainda que com assunção de mais risco. O mercado de capitais apresenta várias vantagens em relação aos outros modelos. É mais barato, mais dinâmico e mais eficiente. Mas exige o cumprimento de regras para funcionar bem, pois depende da confiança dos agentes econômicos. Afinal, o investidor precisa acreditar que não está entrando em um jogo de cartas marcadas.

Com a dimensão que assumem as empresas de capital aberto, o desvio de conduta de poucos pode ter reflexos negativos em toda a economia, com potencial até mesmo de gerar uma crise econômica. A depender do porte da companhia, a decisão de seus administradores de maquiar demonstrações contábeis ou de buscar interesses particulares em detrimento dos interesses da companhia pode pôr em risco o equilíbrio da economia.

O regulador tem por atribuição proteger os investidores e garantir que o mercado funcione adequadamente. Tanto é assim que, ainda em 2002, a revista Forbes publicou um artigo sob o título:

“The High Price of Low Salaries at the SEC”
O alto preço dos baixos salários na SEC, em tradução livre

http://www.forbes.com/2002/03/27/0327simons.html

SEC é a sigla da Securities and Exchange Commission, órgão equivalente à CVM nos Estados Unidos. Essa matéria mostra a importância que a sociedade americana atribui a essa atividade, destacando a necessidade de se atrair e reter talentos, uma vez que o conjunto de competências requerido do corpo técnico do regulador de mercado de capitais é da mais alta complexidade.

De 2002 até hoje muita coisa mudou nos EUA. Para se ter uma ideia, o salário médio pago aos servidores da SEC representa de duas a três vezes o que recebem em média os servidores do IRS (Internal Revenue Service, órgão equivalente à Receita Federal naquele país). Não é difícil perceber que no Brasil ainda temos um longo caminho a percorrer nessa matéria.

O que pode ser feito?

Uma vez entendida a importância do regulador para a economia e o desenvolvimento de um país, queremos destacar alguns pontos que, acreditamos, merecem um debate mais sério por parte da sociedade brasileira e dos formuladores de políticas governamentais.

No meio deste ano vencerá o mandato do atual presidente da CVM. Além disso, desde 1º de janeiro estamos com uma vacância no Colegiado, após a saída do diretor Roberto Tadeu. Neste caso, cabe destacar que se trata de vaga tradicionalmente reservada a servidor de carreira da CVM, e não esperamos que seja diferente com respeito à indicação de seu sucessor. É essencial que haja diretores de perfil técnico, oriundos das carreiras da CVM e conhecedores profundos da complexa atividade de regulação do mercado de capitais. Quanto ao novo presidente, esperamos que seja indicado alguém capaz de conduzir o mercado de capitais brasileiro e, in tandem, seu órgão regulador, ao patamar que nossa economia merece.

Destacamos abaixo alguns aspectos que devem ser atacados:

  • Legislação ultrapassada, incapaz de evoluir no mesmo ritmo de um mercado tão dinâmico e globalizado como o de capitais;
  • Estrutura muito verticalizada, com baixo nível de autonomia técnica de analistas e inspetores;
  • Falta de recursos para capacitação de servidores e de um programa estruturado que inclua, entre outras atividades, curso de formação para os ingressantes na autarquia;
  • Participação tímida nos fóruns internacionais pertinentes;
  • Estrutura muito modesta para fazer frente a um mandato tão amplo, que vai de elaboração de normas técnicas a desenvolvimento do mercado, passando por supervisão e sanção;
  • Perfil salarial incompatível com a complexidade das atividades desempenhadas, tanto na comparação com outras carreiras de Estado como com atividades correlatas na iniciativa privada;
  • Baixo nível de transparência e concorrência nos processos internos de escolha de gestores.

Nesse sentido, esperamos que se busque o seguinte:

  • Modernização da legislação relativa a mercado de capitais, incorporando instrumentos já em uso em outras jurisdições, como aumento do valor das multas aplicáveis, possibilidade de celebração de acordo de leniência, programa de whistleblower, congelamento de ativos, etc.;
  • Autonomia investigativa, com liberdade de convencimento e de opinião dos analistas e inspetores em suas manifestações técnicas, a exemplo do que ocorre na Polícia Federal e no Ministério Público e que tem produzido resultados notáveis no combate à corrupção e à criminalidade de modo geral;
  • Regulamentação do artigo 192 da Constituição Federal, que trata do Sistema Financeiro Nacional;
  • Garantia em lei de que as superintendências sejam ocupadas exclusivamente por servidores de carreira, evitando o aparelhamento político da instituição;
  • Programa de capacitação permanente de servidores, para que estejam equipados com os conhecimentos técnicos mais avançados disponíveis;
  • Implantação de um modelo capaz de atrair e reter os melhores talentos da sociedade, com remuneração compatível com o nível de complexidade de suas atribuições;
  • Dimensionamento adequado de recursos humanos e materiais para o tamanho do mercado a ser regulado;
  • Garantia de que mais de um diretor seja servidor da carreira, escolhidos em lista tríplice após votação dos servidores;
  • Garantia de que o produto das taxas, multas e termos de compromisso e leniência seja revertido para o aprimoramento constante da instituição, em consonância com a legislação já vigente.

Acreditamos que a CVM tem um papel institucional muito importante a desempenhar e seu sucesso guarda correlação positiva com o desenvolvimento econômico do país no longo prazo. Esperamos que os governantes e também a sociedade passem a olhar com outros olhos o mercado de capitais e consigam compreender a necessidade de uma mudança profunda do paradigma atual da regulação do mercado de capitais no Brasil.

5 respostas
  1. Maurinei says:

    Excelente texto! A esperança é de que a CVM, assim como várias outras entidades no Brasil, sejam cada vez mais tratadas como instituições permanentes de Estado, e não de Governo, com o olhar para o longo prazo.

  2. Agentes_auxiliares says:

    Embora concorde com a maior parte do texto, ele expõe um racha – nem mais tão disfarçado – que existe na CVM: analista e inspetores de um lado, agentes executivos e auxiliares de outro. Existe um enorme subaproveitamento dos agentes que a CVM finge não ver por ser um bom exemplo de instituição burocrática. Ninguém “é” agente ou auxiliar e sim “está” agente ou auxiliar. São muitos os casos de servidores de nível médio que se tornaram fiscais, auditores, consultores, etc. Na CVM eram subaproveitados e em outras instituições são valorizados. O que leva a isso? Miopia da gestão, falta de meritocracia, falta de estabelecimento de desafios independentemente de cargos, valorização do cargo e não do desempenho, etc., podem ser boas respostas.

    • antonio sebastiao says:

      Concordo plenamente em gênero, número e grau. Sempre trabalhei no sentido de tentar mudar esse cenário, mas, infelizmente, nunca fui apoiado pela minha categoria.

  3. Fernando Feitosa says:

    Este texto nos dá condições de apuração da DRS –
    Demenstruação Resultado Social. O verdadeiro ganho da sociedade com uma regulação e fiscalização eficiente e eficaz.

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