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Especialistas em direito administrativo alertam para riscos da Reforma Administrativa

Não há dúvidas de que demonizar o serviço público, ou os servidores que nele se encontram, recebendo, agora, a pecha de ‘parasitas’, e evitar o debate com a sociedade, é discurso falacioso, fácil, antirrepublicano e antidemocrático, à medida que desconsidera que o serviço público, que é prestado pelo servidor público, é essencial para a população brasileira que já usufrui desse serviço e precisa ser ouvida.” Essa é a opinião do Professor Doutor Manoel Messias Peixinho, professor doutor da PUC/RJ, e de Fernanda Magalhães de Araújo, especialista em direito administrativo. Manoel e Fernanda, que também são advogados do escritório Peixinho, Cacau e Pires concederam uma entrevista ao Informativo SindCVM sobre a Reforma Administrativa.

Informativo SindCVM: O Governo Federal encaminhou ao Congresso Nacional, no mês passado, mais uma Proposta de Emenda à Constituição, a PEC 32/2020, chamada de Reforma Administrativa. Foi entregue sem que fosse feito um debate prévio com representantes dos servidores e entidades civis. Qual o interesse de tentar impor uma reforma sem diálogo com a sociedade?

Manoel Peixinho e Fernanda Araújo: A reforma administrativa é uma agenda importantíssima. É indubitável e de conhecimento público que a Administração Pública vive há muito uma crise na gestão de pessoas: há uma desigualdade grande entre categorias de servidores, há um excesso de carreiras, faltam estímulos ao bom desempenho, as despesas são gigantes. Uma modernização na gestão pública de pessoas é, sim, imperiosa. Contudo, a PEC 32/2020 não visa a uma reforma administrativa propriamente dita, na acepção ampla, preocupada com a melhoria do serviço público, aberta ao debate com a sociedade, mas sim a um ajuste fiscal de interesse e de titularidade, ao que parece, do ministro Paulo Guedes.

Por esse motivo, penso que chamar de ‘reforma administrativa’ essa PEC é inapropriado, à medida que tem contornos nítidos de ajuste fiscal.

Uma reforma administrativa pressupõe inexoravelmente discussão com a sociedade de forma ampla. Hoje, fala-se em governança pública como sinônimo de gestão pública, aquele modelo de administração pública que confere tanto ao mercado quanto ao cidadão papel ativo na formulação e aplicação de políticas públicas, modelo, portanto, mais horizontal de Administração Pública, em um ambiente colaborativo até mesmo com outros níveis de governo. Nesse sentido, é também fundamental um diálogo com os representantes dos servidores públicos, já que são eles que podem trazer uma discussão com embasamento técnico, sabem por experiência própria os gargalos a serem enfrentados.

Afastar a discussão da sociedade como um todo parece estratégia conveniente do ponto de vista político e fiscal, já que não há interesse genuíno em melhorar a qualidade do serviço público: o discurso de austeridade agrada, é popular. Em uma realidade de mais de 13 milhões de desempregados, colocar em pauta a estabilidade do servidor público diante do sentimento de ineficiência e ineficácia generalizada do serviço público agrada. A realidade de Covid-19 é estrategicamente oportuna, já que o Congresso Nacional, ao operar de forma remota, inviabiliza o acesso da sociedade às Casas Legislativas.

Outro problema grave dessa pseudo-reforma administrativa é que ela pretende trazer homogeneidade a partir da perspectiva federal de governo, que é expressivamente distinta da dos governos subnacionais. Ora, a realidade constitucionalmente desenhada para a União é o desenvolvimento de atividades muito mais de coordenação do que de execução, exigindo para a Administração federal um quantitativo muito menor de servidores. Vivemos em um Estado federado com múltiplas realidades, que deve saber conviver com a possibilidade de diferenças. É importante reconhecer que elas existem e que justificam determinar tratamentos jurídicos ou administrativos diferentes. Isso torna o debate com os servidores e com a sociedade como um todo proeminente e indeclinável, quando se almeja reais melhorias na prestação do serviço público.

Existe um ambiente politicamente favorável ao discurso fácil, que se pretende alimentar, de que a Reforma Administrativa é importante, de que precisa acontecer, e que, com isso, se terá o fim dos privilégios e do comodismo, e um ganho de qualidade na prestação dos serviços públicos, mas evitam qualquer discussão que possa trazer as reais nuances, necessidades e dificuldades para a melhoria do serviço público. Isso porque não existe de fato essa tônica, já que o viés é estritamente fiscal. O que se pode esperar de um projeto que se pretende reformar a administração pública sob a perspectiva econômica? Ela se destina a atender aos anseios e pressões do mercado de investidores, dos empresários.

Não há dúvidas de que demonizar o serviço público, ou os servidores que nele se encontram, recebendo, agora, a pecha de “parasitas”, e evitar o debate com a sociedade, é discurso falacioso, fácil, antirrepublicano e antidemocrático, à medida que desconsidera que o serviço público, que é prestado pelo servidor público, é essencial para a população brasileira que já usufrui desse serviço e precisa ser ouvida. Não se pode perder de vista que os servidores públicos são os prestadores dos serviços públicos, estão na linha de frente, enquanto os cidadãos são os destinatários desses mesmos serviços.

A principal e grave discussão sobre servidor no Brasil é que pensam que todos os servidores são iguais. Servidor público não objetiva vantagem automática por tempo de serviço, quer reconhecimento pelo trabalho individual. Nosso problema não é o tal parasitismo, como afirmou o ministro Paulo Guedes; nosso problema é falta de estímulo e de reconhecimento pelo desempenho individual do servidor, e essa não parece ser a preocupação da PEC 32.

 

Informativo SindCVM: Na sua opinião, a PEC 32/2020 pode abrir caminho para a reforma do Estado criando facilidades para que os chefes de poderes possam se desfazer de órgãos públicos e dos servidores a eles vinculados? E conceder a organizações privadas a administração de instituições e serviços que hoje permanecem sob tutela do Estado?

Manoel Peixinho e Fernanda Araújo: Uma das ideias preocupantes na PEC 32 é conferir ao presidente da República o poder de, sem autorização do Legislativo, extinguir, transformar ou fundir autarquias e fundações. Isso inclui o Ibama, o BC, o Cade, as agências reguladoras, as universidades federais, o CNPq.

É evidente que, em um Estado democrático de direito, não podem ficar nas mãos de uma só pessoa as decisões sobre organização administrativa em áreas tão importantes, tais como meio ambiente, patrimônio histórico, política monetária, defesa da concorrência, regulação econômica, ensino superior e desenvolvimento científico. É voltar ao malquisto autoritarismo do Estado absolutista, do, por nós experimentado, Estado Novo varguista e do período da ditadura, período de recessão democrática

Ao criar a possibilidade de instituições públicas serem administradas por organizações de direito privado, corre-se o grave risco de se abrir mão da isenção necessária à prestação do serviço público à sociedade, seja nas decisões, seja nos encaminhamentos e contratações. A impessoalidade é a garantia de que o administrado receberá tratamento igual ao daqueles que se encontrem na mesma situação jurídica. Cuida-se, portanto, de uma faceta do princípio fundamental da isonomia, insculpido no inciso I do art. 5º da CRFB/88.

Essa prerrogativa, se conferida ao chefe do Executivo federal, e por simetria, aos chefes do Executivo subnacionais, favorecerá enormemente o desfazimento de órgãos públicos e, por via de consequência, dos servidores a eles vinculados, segundo interesses próprios, despidos da finalidade pública.

No contexto das agências reguladoras, isso parece ser gravíssimo, pois a já precária autonomia reforçada, necessária à regulamentação do mercado, se tornará uma utopia.

O que estou dizendo é que, com essas medidas, se aprovadas, estar-se-á abrindo caminho para a perpetuação do patrimonialismo (quando se utiliza da máquina pública para satisfazer interesses unicamente particulares), para a improbidade, colocando em xeque a moralidade e a imparcialidade, princípios constitucionais caros à República – conseguidos a duras penas durante o processo de redemocratização. Tais medidas não avançam rumo à concretização do ideal constitucional; ao revés, evidenciam inegável retrocesso. O único modo de a Administração dar concretude à impessoalidade é perseguir estritamente o interesse público, e não o privado.

Desse modo, tais medidas previstas na PEC 32/2020 abrem caminho para uma reforma do Estado, no sentido negativo, pois viabilizam o autoritarismo, o predomínio de interesses nada republicanos, além de dificultar o instrumento do controle, tanto administrativo quanto judicial.

Imagine como seria difícil, e como já o é, fazer prova clara e irrefutável de ato administrativo, por exemplo, normativo eivado de desvio de finalidade, considerando-se que a grande maioria dos atos emanados do poder público estão travestidos de finalidade pública. Basta olharmos para a nossa história e para a nossa realidade atual, para constatarmos esse fato.

Tais medidas, indiscutivelmente, enfraquecem a democracia e desmontam a República.

 

Informativo SindCVM: Entre as propostas mais criticadas da PEC 32/2020 está o fim da estabilidade do servidor. Que implicações essa medida pode ter, caso seja aprovada? Poderia explicar como a regulamentação em lei ordinária, diferente de lei complementar como estabelece hoje o artigo 41 da CF, pode alterar as condições de demissão dos servidores e como poderia afetar a qualidade dos serviços públicos? Qual a implicação para as esferas dos Estados e Municípios?

Manoel Peixinho e Fernanda Araújo: A PEC propõe que apenas cargos típicos de Estado, com ingresso por meio de concurso público, postergando a posse para depois do término do vínculo de experiência, terão estabilidade. No entanto, tais servidores podem ser demitidos por processo disciplinar ou por ineficiência de desempenho. Essas regras valeriam tão somente para os novos servidores. Os critérios para definição do que será considerado cargo típico do Estado dependeria de lei complementar federal.

O fim último da Constituição federal não se destina a proteger o agente público, mas sim garantir a prestação do serviço público com isonomia, imparcialidade, moralidade e eficiência. A ideia constitucional é proteger a função pública. A estabilidade visa ao bom e fiel cumprimento da função pública, sem a ingerência de interesses particulares, sem pressões e embaraços que possam comprometer a persecução da finalidade pública.

Em outras palavras, a garantia da estabilidade visa impedir que os servidores se utilizem do aparato público a seu favor, em detrimento da coletividade. Em última instância, mitigar a estabilidade dos servidores públicos é comprometer a necessária imparcialidade do Estado, o que inarredavelmente afetará a prestação dos serviços públicos.

Quando se pensa que, dentro de um mesmo órgão da Administração Pública, possam coexistir alguns cargos dotados de estabilidade, que muito provavelmente serão próprios de cargos elevados, com outros cargos subordinados àqueles primeiros sem esse atributo, dá-se margem à existência de submissão a ordens de cunho de interesse pessoal, ou até ilegais, temendo perseguições disciplinares, na hipótese de uma negativa por parte do servidor subordinado. Além disso, tal medida desestimulará a denúncia aos órgãos de controle de atos de improbidade administrativa por receio de retaliações.

Como se vê, a retirada da estabilidade do servidor público desestabiliza o funcionamento da máquina pública, o que dificulta, inclusive, o controle interno e externo de sua atuação.

Reformar a Constituição nesse aspecto pode representar um retorno ao passado, a fragilização da proteção contra a pessoalidade, o abuso de poder e o desvio de finalidade na Administração Pública, com reais perdas para toda a sociedade.

Não é preciso acabar com a estabilidade dos servidores, que é uma blindagem jurídica contra pressões indevidas, para melhorar a gestão pública. Cobrar o aumento da produtividade e premiar quem faz mais podem ser feitos por leis ordinárias.

Ademais, já há previsão constitucional para a perda do cargo de servidor estável por baixo desempenho, dependendo de lei complementar, que nunca foi editada. Não é preciso inovar quando o texto constitucional já prevê o mesmo instrumento para a fiscalização e controle do servidor.

Agrava-se o fato de conter na PEC previsão de perda do cargo por baixo desempenho por lei ordinária, e não mais por lei complementar, como prevê atualmente o inciso III do art. 41 da CRFB/88. É preciso considerar que uma lei ordinária exige quórum menor que uma lei complementar. Enquanto esta requer quórum de maioria absoluta, a lei ordinária requer maioria simples, isto é, 257 deputados na Câmara e 41 no Senado, não necessariamente presentes nos respectivos plenários, podendo ser aprovada pela maioria dos parlamentares presentes no momento da votação, o que facilita a aprovação de sua regulamentação. Outro ponto é que, sem a lei complementar, basta a promulgação da emenda constitucional para que os chefes de Poder dos estados encaminhem suas propostas de regulamentação aos respectivos legislativos. A previsão de lei complementar, como consta hoje do artigo 41 da Constituição, permite uma lei de abrangência nacional com as diretrizes que orientarão todos os entes federados, o que manteria uma certa uniformidade, de modo a dificultar situações que permitam pressões políticas e institucionais.

A PEC, na prática, procura aumentar a confusão e procrastinar as mudanças necessárias que poderão trazer melhorias substantivas no funcionalismo público; e, no final, é a população quem mais perde qualidade na prestação do serviço público com o fim da estabilidade do servidor. Assim, não me parece ser a extinção da estabilidade do servidor público o caminho para a modernização e para a obtenção de melhores resultados.

 

Informativo SindCVM: A proposta da Reforma Administrativa vem sendo explorada pelo Governo e parte da mídia como uma estratégia para tornar o Estado mais enxuto e viabilizar o equilíbrio fiscal. Todavia, na sua opinião, poderia afetar os serviços de controle, fiscalização e normatização do sistema financeiro nacional e da segurança dos investidores no Brasil?

Manoel Peixinho e Fernanda Araújo: A PEC 32 é uma dose da agenda neoliberal de enxugamento do Estado. Fato é que no próprio governo se observa conflito sobre o que deve ou não ser alterado em termos de reforma política. Ao que parece, quem deseja a aprovação dessa proposta é o ministro Paulo Guedes, cedendo a pressões do mercado e estimulando investimentos privados. A ideia é que, com privatizações e o programa de concessões, consiga-se atrair recursos privados locais e estrangeiros para o Brasil, a fim dar mais dinamicidade à economia pátria.

Entretanto, o enxugamento do Estado, nos moldes apresentados pela PEC 32, pode representar a interferência e influência do setor privado nas agências estatais de regulação, a exemplo da CVM, que tem como finalidade o controle, a fiscalização e a regulação do sistema financeiro nacional, visando à segurança dos investidores no Brasil. A principal característica das agências reguladoras para a consecução dos seus misteres é a já precária autonomia reforçada. É ela quem possibilita o exercício do poder de polícia de modo imparcial, visando corrigir as falhas de mercado, tal como a assimetria de informações. Tal atributo estaria fadado ao soterramento com a possibilidade de qualquer ingerência legitimada do setor privado.

 

Informativo SindCVM: Ao mesmo tempo, o debate da Reforma Tributária vem perdendo espaço. Por que isso vem acontecendo?

Manoel Peixinho e Fernanda Araújo: A reforma tributária está com dificuldades de sair do lugar, em razão da falta de consenso, da multiplicidade de interesses e de pressões. Além disso, com o próximo ano eleitoral, um tema tão complexo acaba perdendo muito espaço em favor da agenda eleitoral entre os congressistas.

Outro ponto a se considerar é a perda relevante de arrecadação de tributos pelos estados e municípios ocasionada pelas medidas de enfrentamento ao espraiamento da Covid-19, fazendo com que a necessidade de reposição desse déficit fosse priorizada: a redução de gastos passou a ser a tônica da discussão. Assim, vislumbrou o Executivo federal, rectius, Ministério da Economia, maiores chances de ver aprovada uma agenda de ajuste fiscal, a fim de atender a pressões do mercado financeiro.

 

Informativo SindCVM: Quais são suas opiniões quanto a substituição do atual estágio probatório pelo vínculo de experiência? Esta proposta abre brechas para a interferência política nas atividades dos servidores enquanto tutelados por este vínculo? O servidor aprovado ainda teria que se submeter a mais um período de avaliação, além do vínculo de experiência. Isso não motivaria mais controle político que efetiva qualidade do serviço público?

Manoel Peixinho e Fernanda Araújo: O vínculo de experiência é considerado a segunda etapa do concurso e terá período mínimo de 1 ano para cargos por prazo indeterminado (servidores não estáveis) e período mínimo de 2 anos para os cargos típicos de Estado (servidores estáveis). Passarão por esse processo candidatos aprovados na etapa de provas ou de provas e títulos em número superior ao número de vagas definidas no edital do respectivo certame. Seria uma fase eliminatória em que apenas os mais bem avaliados poderão ser efetivados nos cargos vagos estabelecidos no edital.

Para os cargos típicos de Estado, após o término dessa etapa do concurso, já empossados, os servidores ainda passarão por um período de avaliação de 1 ano para adquirir estabilidade.

Diante desse cenário, cria-se um ambiente de forte competição entre os candidatos para alcançar a classificação, se digladiarão. E a PEC não traz quais os critérios, as balizas ou indicações a serem obrigatoriamente adotadas pelos entes federativos, nem mesmo determina edição de lei complementar federal, a fim de regular e dar maior coesão à matéria particularmente sensível, deixando ao crivo desses entes subnacionais a definição de tais critérios, sem contar o excessivo número de vezes que o Judiciário será invocado para exercer o controle sobre essa etapa diante da subjetividade que lhe é inerente…

No meu sentir, esse vínculo abre enormes fendas, quase buracos, de oportunidade para o subjetivismo, o “pai-trocínio” e até mesmo para a corrupção. É abrir a porteira para o jogo da politicagem.

Veja que desde sempre se trava permanente combate contra a pessoalidade e a imoralidade na administração pública; e me parece que esse vínculo é criar um ambiente favorável ao “esquema”, ao favoritismo, é enfraquecer o processo seletivo impessoal, inclusivo e democrático do concurso público. A ocasião certamente fará o ladrão! Ainda que fosse possível justificar essa mudança em razão dos benefícios efetivos que trariam para a melhoria da prestação do serviço público…, mas nem isso! O candidato está preocupado em ser classificado. Isso não espelhará necessariamente o profissional que será quando efetivado dentro de uma estrutura que não o valoriza, não o impulsiona, que é indiferente tanto com aquele que faz o básico quanto com aquele que sai da zona de conforto e vai além, faz a diferença.

Essa etapa, na minha opinião, não contribui em rigorosamente nada para a melhoria no serviço público, apenas aumenta a confusão, além de se distanciar da pauta substancial da constituição, nomeadamente a democracia e os direitos fundamentais.