,

Especialista do TRT analisa o assédio moral

O assédio moral vem sendo tema das últimas edições do SindCVM Informa. Para aprofundarmos o debate sobre a questão convidamos a assistente social do TRT (Tribunal Regional do Trabalho), doutora pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que abordou o tema do assédio no serviço público e formas de combate ao problema.

SindCVM Informa: O assédio moral no serviço público se manifesta de maneira diferenciada? Quais suas especificidades?

Karla Valle: A violência laboral é um fenômeno multifacetado e que se expressa de forma distinta conforme as particularidades da cultura organizacional de cada instituição. Neste sentido, um ponto primordial para se pensar o assédio moral é reivindicarmos a terminologia “violência laboral”, adotada pela Organização Internacional do Trabalho para explicar a junção da violência moral e psicológica no labor inerentes ao ato de produzir.

Com isso, tendo como base os autores que, a meu ver, são as principais referências sobre a temática no Brasil (Professor José Roberto Heloani e a médica do Trabalho Margarida Barreto), pontuo que utilizar a terminologia “violência laboral” irá propiciar que possamos dar visibilidade a uma gama de distorções gerenciais e organizacionais que, embora violentas e adoecedoras, não atendem perfeitamente ao conceito do assédio moral. É importante abordar este aspecto porque algumas demandas latentes acabam sendo naturalizadas e não enfrentadas por políticas de enfrentamento ao assédio moral que desconsideram que este é um fenômeno mais complexo… que o caminho até ele é de uma instituição pautada pelo preconceito, pela naturalização da humilhação, do utilitarismo e de posturas inapropriadas em nome da produtividade.

É importante demarcar que existem violências menos sistemáticas, mais pulverizadas, sem um alvo em específico, muito vinculadas a perfis gerenciais como a chamada gestão por injúria e/ou a gestão pelo medo ou por pressão. Estas formas de gerir equivocadas, conforme assinalei, constituem a base de conduções gerenciais pautadas por preconceito e formas de humilhação facilitando a instauração de um fenômeno tão complexo e bárbaro como o assédio

moral no trabalho (o qual não se resume a um dano moral). Para uma conduta ser classificada como assédio moral ela precisa “atender” minimamente a tríade “conduta abusiva, repetitiva e frequente”, vinculada às formas de organização do trabalho e a cultura organizacional de uma instituição. Para além disso, ainda me pautando na perspectiva do professor Heloani, incorporo a este conceito a ideia de intencionalidade, tendo em vista que a repetição de um ato abusivo de forma sistemática não pode ser entendida como “sem querer”. Não há justificativa para a violência laboral: metas, produtividade, o adoecimento psíquico de gestores não é desculpa para adoção de técnicas gerenciais abusivas. Buscar metas e atender melhor à sociedade é legítimo. O que não é legítimo é adotar técnicas de psicoterror como mecanismo de produzir.

Desta forma, pontuo que o assédio moral (e sexual) no trabalho carrega consigo uma grande gama de danos, sejam morais, psicológicos, de saúde, existenciais, patrimoniais (etc.) advindos do desequilíbrio de poder utilizado como ferramenta de integração ou exclusão dos sujeitos de um ambiente laboral.

A Marie-France Hirigoyen, psicanalista e médica psiquiatra – grande referência no tema – foi a primeira estudiosa a apontar que a violência laboral e mais especificamente o assédio moral são mais graves nas instituições públicas tendo em vista, ironicamente, a estabilidade e a dificuldade de mobilidade institucional dos trabalhadores. Com isso, os servidores e funcionários públicos passam um período muito maior submetidos às violências, impotentes e descrentes das suas próprias instituições. No contexto brasileiro em que tais instituições são atravessadas por nossos vícios de sociabilidade (coronelismo, patrimonialismo etc.) este aspecto torna-se ainda mais insidioso, tendo em vista que se estabelece uma cultura imobilista e de medo pautada na descrença nos aparatos institucionais e coletivos de defesa. Muitas vezes, a única saída destes trabalhadores é via adoecimento, readaptação funcional, aposentadoria ou suicídio. Sem dúvidas é urgente que as instituições criem Políticas de Enfrentamento e Combate à Violência Laboral, ao Assédio moral e Sexual. Não abdicar do termo violência laboral é estratégico para que as pessoas que busquem auxílio não sejam penalizadas se por um acaso uma gestão abusiva não se configurar exatamente como assédio moral, mas ainda assim for abusiva e adoecedora. Não tem como enfrentar o assédio moral sem debater a

gestão de nossas instituições públicas, como bem nos alerta o professor Giovanni Alves (UNESP).

SindCVM Informa: A CVM faz a supervisão do setor do mercado de capitais onde vem ocorrendo muitas inovações, com a aplicação de novas tecnologias e a utilização de serviços de comunicação pela internet. A rapidez desses processos exige uma adaptação dos procedimentos. Existe algum estudo sobre o impacto dessa correlação entre a necessidade de adquirir novos conhecimentos e habilidades com o assédio moral? Essa situação pode se agravar com o crescente volume de trabalho e diminuição do corpo funcional?

Karla Valle: As novas tecnologias são conquistas societárias que, em verdade, deveriam ter a função de liberar ainda mais tempo de vida para todos nós. Todavia, quando tais tecnologias são pautadas por uma perspectiva quantofrênica e quase toyotista que incide sobre as nossas instituições públicas, acaba por aumentar a sensação de intensificação do labor. Com isso, administra-se um quantitativo ainda maior de informações, sem a devida separação entre o tempo de vida e labor, provocando o que o professor Giovanni Alves chama de “sensação de vida reduzida”. Afinal, o homem acaba abdicando de qualquer tempo de lazer realizador, sentindo-se humano somente em suas funções “animais” (comer, beber, dormir etc). Não à toa os adoecimentos psíquicos e sofrimento no labor são a grande sintomatologia de nossa época. O assédio moral é reflexo direto deste contexto que abdica da reflexão ética e naturaliza o individualismo e o utilitarismo em nossas relações de trabalho. De forma alguma o assédio moral é um fenômeno meramente psicológico, de bem e mal. Ele é, intrinsecamente, um fenômeno vinculado à dimensão ético-valorativa e de organização do mundo do trabalho. Não à toa intensificam-se os debates em torno do direito à desconexão ao trabalho, da preservação da intimidade e privacidade dos trabalhadores, num contexto de “telepressão”. É importante salientar, inclusive, que o “teleassédio moral e sexual” é uma realidade. Por fim, se eu debato o gerencialismo como a gestão convertida num fetiche e visão de mundo que a tudo justifica em torno de uma falsa sensação de produtividade, sem dúvidas, essa cultura esvaziada de senso crítico que inclusive converte a qualificação dos trabalhadores em algo meramente instrumental irá contribuir para o assédio moral. Repito: o assédio moral é uma questão inerente às formas de organização do trabalho e a cultura organizacional. Sua base está, justamente, no estabelecimento de metas e parâmetros para os quais

não existem meios concretos de chegar/alcançar. Logo, se faltam funcionários e estabeleço metas irreais, sem dúvidas estou imprimindo uma dinâmica favorável ao irracionalismo e à adesão a técnicas abusivas em torno de um objetivo inalcançável.

SindCVM Informa: Quais soluções uma boa gestão de pessoal pode realizar para impedir o assédio moral? E aqueles que se sentirem assediados? Como devem proceder?

Karla Valle: A meu ver, só se combate assédio moral e sexual no trabalho debatendo gestão, cultura organizacional e formas de organização dos processos de trabalho. É preciso abandonar as falácias gerenciais focadas na personalidade dos sujeitos (como é visto em muitos cursos de chefia e liderança que usam até Gandhi de exemplo!) e começar a debater gestão, metas, produtividade. É preciso chamar gestores e trabalhadores a debaterem ética nas relações de trabalho, mais do que o próprio assédio moral em si. É preciso debater coletividade e valores. Fugir da noção vulgarizada da autoajuda gerencial que convida gestores a se chamarem de líderes sob uma perspectiva sentimentalista, piegas, que tira o foco das distorções gerenciais e o coloca nos sujeitos. Assim, reitero, uma política de combate ao assédio moral precisa começar como uma política de enfrentamento à violência laboral, ao assédio moral e sexual, recusando a mitigação do assédio em conflitos interpessoais ou em questões de personalidade. No conflito não há assimetria de poder. Na violência laboral, há!

Outro ponto importante é que as políticas de enfrentamento ao assédio não podem ter como porta de entrada a denúncia. Ora, se o assédio muitas vezes só é percebido quando os sujeitos já estão adoecidos e sem provas, como ainda vamos exigir que estes denunciem? Numa instituição em que não se confia, com medo de retaliações?

O primeiro ponto de uma política séria é receber as pessoas sob sigilo. Acolher, ouvir a história. Encaminhar para médicos e psicólogos (para o fortalecimento e também para produzir provas). Após o fortalecimento do indivíduo, auxiliá-lo na junção de provas, ouvir testemunhas, entender o fenômeno. Só depois levar para a esfera da denúncia. Afinal, não tem como resolver uma situação de

assédio sem a implicação do sujeito alvo. Por isso, cada passo deve respeitar o tempo e autonomia deste sujeito.

Foi assim que eu e meus colegas profissionais de saúde pensamos a Política de nossa instituição. É preciso acolher, cuidar e orientar para a produção de provas para que o sujeito se sinta protegido e seguro para enfrentar os processos de denúncia e responsabilização. Para além disso, um gestor pode ser denunciado por uma gestão por injúria sem que isso se classifique como assédio moral. Neste caso, as soluções podem ser ainda mais simples.

Quem se sente assediado, mesmo sem ter a certeza, deve buscar acompanhamento médico e psicológico para se fortalecer, consciente de que tais dados podem virar provas de danos psíquicos e físicos. Deve anotar o próprio trabalho, sua produtividade, visto que estará sendo posto em xeque como trabalhador. Deve, também, anotar o comportamento do agressor, mesmo o subjetivo (dias, horários, quem estava perto), pois isso pode servir como indício de provas. Para além disso, salvar e fotografar e-mails, mensagens comprometedoras, etc. Não cair na tentação de devolver as agressões do assediador na mesma moeda (por isso é imprescindível auxílio psicológico). Os espectadores do assédio devem saber que o alvo se sente tão isolado e vulnerável que, por vezes, ouvir de outra pessoa que ela também viu o que estava ocorrendo, se colocar à disposição para conversar, ser testemunha, já é um grande avanço. Afinal, o alvo tende a duvidar de sua própria percepção tendo em vista o funcionamento perverso do assédio. O enfrentamento do assédio só será efetivo se o grupo e a coletividade dos trabalhadores estiverem atentos ao fenômenos, desnaturalizando todas as formas de gestão abusiva.